Roma nos tempos de Paulo: um breve panorama histórico

Acredita-se que a carta aos romanos foi escrita por volta de 58 A.D. (Ryrie, 1994). Esta importante epístola, portanto, encontra seus primeiros destinatários vivendo durante o reinado de Nero, imperador entre 54 e 68 A.D. (Encyclopaedia Britannica, 2014). Embora a reconstrução de um passado tão distante não seja tarefa simples, e isenta de possíveis interpretações incorretas, interessa-nos explorar sucintamente alguns elementos que provavelmente constituíram o contexto social, político, econômico, religioso e moral da capital do império romano neste peíodo histórico. Trata-se de uma viagem muito importante porque, afinal de contas, a igreja que nasce em Roma adquire influência significativa, que peregrina pelos séculos e chega até os dias de hoje.

Segundo o historiador americano James S. Jeffers (1991), a Roma do primeiro século certamente impressionava seus visitantes. Era a capital do mundo daqueles tempos. Suntuosos edifícios públicos com pórticos de mármore, belíssimas mansões particulares, teatros, banhos públicos e um comércio intenso de mercadorias vindas de todas as partes, movimentado freneticamente por uma população de mais de um milhão de habitantes1 que anunciavam uma riqueza acumulada até então impensada. Todavia, mesmo que o conjunto de prédios públicos e mansões particulares representassem mais da metade da área construída, a maioria da população era composta por escravos e estrangeiros livres, ambos com baixo status social, tornando a cidade um marco não apenas de opulência, mas de desigualdade social. Grande parte da população vivia em pequenas casas de um ou dois cômodos ou apartamentos conjugados com lojas comerciais, comumente escuros e empoeirados, frios no inverno, muito quentes no verão. Sem água corrente, diferentemente das instalações mais ricas, grande parte dos moradores caminhavam por ruas movimentadas, bem estreitas e cobertas de grafiti2, em busca de água nas fontes públicas. Uma família romana típica de não escravos, levantava-se logo pela manhã e se dirige às lojas onde trabalham, levando suas crianças consigo, retornam apenas no final do dia - tomando o devido cuidado para não voltarem muito tarde na tentativa de minimizar riscos de assaltos, muito comuns naquele tempo e em uma cidade que não dispunha de iluminação noturna - explica Jeffers. Embora o Latim fosse a língua oficial do império, o grego era utilizado em transações comerciais e comumente falado por todos. Esta era a língua dos primeiros cristãos que ali viviam.

Os cidadãos romanos gozavam de status social mais privilegiado que o dos estrangeiros, permitindo-lhes acesso a um tratamento especial por parte do Estado. Se fossem vítimas de algum crime, por exemplo, a situação poderia ser oficialmente investigada, ao contrário dos estrangeiros, responsáveis por sua própria segurança. Além disso, os cidadãos não podiam ser condenados sem julgamento oficial, nem estavam sujeitos a execuções sumárias, como a crucificação. Este era o caso de Paulo, que possuia cidadania romana desde seu nascimento (cf. Atos 22:27-29).

No que tangge os padrões morais, casos de promiscuidade e perversão sexual eram comuns. Costumes praticados por Nero, por exemplo, foram registrados pelo historiador romano Suetônio e nos ajudam a compreender melhor algumas exortações registradas na carta de Paulo:

"Sem falar do commercio infame com os homens livres e seus amores adúlteros, violou uma vestal3 chamada Rubria. Esteve quasi arriscado a casar com a sua liberta Actéa, e alliciou homens consulares para affirmarem que ella era de nascimento real. Tornou eunuco um rapaz, do nome de Sporo, pretendeu transformal-o em mulher, e esposou-o com o apparato mais solemne. [...] Mandou vestir este Sporo como uma imperatriz e acompanhou-o em liteira nas assembleias, nos mercados da Grécia e nos bairros de Roma, dando-lhe beijos de quando em quando. Está demonstrado que elle quiz gozar de sua mãe […] assegura-se mesmo que todas as vezes que andou em liteira com a mãe, se percebeu sobre as vestes vestígios de profanação. Prostituia-se de forma, que não havia um só dos seus membros que não estivesse maculado. Imaginou, como uma nova espécie de jogo, cobrir-se com uma pelle de animal, e lançarse d'uma galeria sobre homens e mulheres ligados a postes e entregues em presa aos seu desejos, e quando os tinha satisfeitos, elle próprio servia de presa ao seu liberto Doriphoro, que esposou, assim como Sporo; fingiu mesmo com elle os gritos que a dôr arranca á virgindade arrebatada. Sei por varias pessoas que Nero estava persuadido que homem algum era casto em nenhuma parte do corpo, mas que na maior parte sabiam dissimular os seus vicios; assim, perdoava a todos que confessassem a sua impureza" (Suetônio, 1923, pp. p.171–2).

Os primeiros membros da igreja de Roma pertenciam provavelmente à classe de estrangeiros livres, escravos e cidadãos de origem escrava, explica Jeffers. Embora toda população, em geral, compartilhasse da cultura helênica, os primeiros cristãos romanos de origem estrangeira não encontravam honra ou identidade social naquele contexto, assim, "como outros não-romanos, eles eram constantemente confrontados com as diferenças entre eles e a elite romana em termos de linguagem, educação, riqueza, poder e honra" (Jeffers, 1991, pp. p.139–143,tradução nossa). Neste sentido, eram percebidos com descredibilidade pela elite imperial. De acordo com Suetônio, por exemplo, Nero "Maltratou os christãos, espécie de homens entregues ás superstições e aos sortilégios." (Suetônio, 1923, p. p.165,tradução nossa).

Já os judeus romanos, gozavam privilégios especiais, provavelmente porque apoiaram a acensão de Júlio César ao poder. Eram dispensados do serviço militar e livres para reunirem-se em seu templo, cobrarem taxas e não eram obrigados a adorar o imperador, as sinagogas eram consideradas associações religiosas reconhecidas oficialmente. Segundo Jeffers, acredita-se que no primeiro século cerca de 40 a 50 mil judeus viviam em Roma, viviam com poucos recursos e, como os demais estrangeiros, não eram vistos com bons olhos pela elite (Jeffers, 1991, pp. p.348–350).

Quanto aos cristãos, mesmo aqueles oriundos do judaísmo, não gozavam dos mesmos privilégios. Enquanto Judeus se reuniam nas sinagogas, eles se encontravam clandestinamente em igrejas nas casas. Por este motivo, eles provavelmente se reuniram por meio de associações voluntárias, muito comuns em Roma, explica Jeffers. Certamente, possuíam pouca ou nenhuma liderança centralizada ou representação hierárquica oficial, mas tais associações forneciam-lhes senso de identidade e pertencimento, além de proporcionar apoio mútuo.

Acredita-se que Paulo tenha chegado em Roma por volta de 60 A.D. e, a julgar pelo rico conteúdo sistemático da carta escrita para os romanos, tinha por objetivo auxiliar o processo de organização da igreja que se reunia ali. Foi recebido pelos cristãos romanos, mas chegou na condição de prisioneiro do império, embora tenha recebido liberdade para ensinar e receber visitas (Atos 28:30-31). Quatro anos depois os cristãos foram culpados por Nero de terem criminosamente incendiado Roma, inicia-se uma dura perseguição. De acordo com Suetônio, Nero "Maltratou os christãos, espécie de homens entregues ás superstições e aos sortilégios." (Suetônio, 1923, p. p.165). Tacitus, importante historiador romano, registrou o contexto:

"Mas todos os esforços humanos, todos os caros presentes do imperador e as propiciações aos deuses, não baniram a crença sinistra de que o incêndio foi resultado de uma ordem. Consequentemente, para se livrar das consequências Nero suprimiu a culpa e infligiu as mais terríveis torturas contra uma classe odiada por suas abominações, chamada pelo povo de cristãos. Christus, de quem origina-se o nome, sofreu a penalidade extrema durante o reinado de Tibério, nas mãos de um de nossos procuradores, Pontius Pilatus. Assim, preparada para o momento, uma superstição perniciosa mais uma vez quebrou-se não apenas na Judéia , a primeira fonte do mal, mas também em Roma, onde todas as coisas horríveis e vergonhosas de todas as partes do mundo encontram seu centro e tornam-se populares. Primeiramente, foram presos todos os declarados culpados; em seguida, com base na informação obtida com estes, uma imensa multidão foi condenada, não tanto pelo crime de incendiar a cidade, mas pelo ódio contra a humanidade. Zombarias de todo tipo foram adicionada às suas mortes. Coberto com peles de animais, eles foram rasgados por cães e pereceram ou foram pregados a cruzes, ou foram condenados às chamas, queimados para servir como uma iluminação noturna após a luz do dia ter expirado" (Tacitus, 2000).

Com o passar dos anos a igreja romana foi tomando forma. Há dois documentos importantes que nos ajudam a compreender melhor as transformações que ocorreram e o modo como o ensino dos apóstolos foi assimilado. O primeiro documento, é uma carta escrita por um cristão chamado Clemente por volta do ano 90 A.D. A igreja que reunia-se na casa de Clemente gozava de situação social e econômica privilegiada, acredita-se que sua congregação era formada por cidadãos romanos ex-escravos. Clemente era um homem bem educado, Os escravos que serviam à burocracia imperial eram treinados por meio de um cursus honorum, no qual aprendiam latim, grego e matemática. Ele chegou a escrever uma carta aos cristãos da igreja de Corinto, documento que ficou conhecido como 1 Clemente. Ele é considerado, atualmente, pela igreja católica romana como o terceiro papa a partir de Pedro, o apóstolo. Os cristãos que pertenciam ao grupo de Clemente consideravam-se "bons cidadãos de um Estado que havia trazido concórdia ao mundo mediterrâneo e provido um modelo para a igreja. O exército romano, por exemplo, apresentava um modelo de disciplina, ordem e uma inquestionável obediência que resultou no estabelecimento e manutenção da Pax Romana" (Jeffers, 1991, pp. p.1593–5, tradução nossa).

O outro documento da época é chamado de O Pastor de Hermas, escrito entre 88 e 97 A.D. Ele apresenta características que provavelmente representam a visão de mundo da maioria dos cristãos romanos de origem social menos privilegiada. Por serem mais pobres e, por isso, mais afastados da ideologia da elite romana, apara eles a visão exposta em 1 Clemente constituía um comprometimento da verdadeira piedade cristã com elementos da sociedade imperial romana. Segundo o autor de Hermas, explica Jeffers, ele reconhece o sistema de patronagem romano, mas defende que os pobres devem mostrar gratidão a Deus, não aos seus patrões. Segundo Jeffers, Hermas via o Estado romano como algo completamente diferente da prática cristã, por isso "virou a relação patrão-cliente de ponta a cabeça ao fazer dos pobres piedosos os verdadeiros guerreiros do cristianismo" (Jeffers, 1991, pp. p.1599–1603, tradução nossa).

Nest sentido, Jeffers argumenta que quanto mais alto o status social dos cristãos romanos, mais estavam propensos a adotar os valores da sociedade romana, na qual estavam inseridos. Observa-se, portanto, uma inclinação da igreja romana, principalmente aquela composta por membros mais elitizados, de transformar o modelo de koinonia proposto por Paulo - fundamentado em relações comunitáias baseadas no amor e no serviço a Deus e ao próximo - em um sistema social hierárquico semelhante ao da elite social romana. Nas palavras de Jefers, "a congregação de Clemente havia deixado de se assemelhar a uma seita na medida em que introduziu uma divisão entre leigos e clérigos, enfatizando deveres oficiais ao invés de espontaneidade, estava inclinada a se identificar com a sociedade maior e recusou a definir-se como um grupo em protesto" (Jeffers, 1991, pp. p.2243–2244, tradução nossa). Com o passar do tempo, a perspectiva do grupo de Clemente prevaleceu, talvez porque sua educação privilegiada, com relação à maioria dos demais cristãos, transformou-os em uma espécie de elite intelectual cristã. No final das contas, esse foi o modelo que mais influenciou a igreja romana e, por extensão, toda a cristandade até os dias atuais.

Acredita-se que mesmo antes de 100 A.D. já haviam catacumbas cristãs em Roma (Bright & Simons, 2007). As perseguições, iniciadas por Nero, continuaram até o tempo de Constantino, por volta de 313 A.D. quando inicia-se um novo período na era cristã.

1 É possível que a população tenha alcançado até mesmo 4 milhões de habitantes (Bíblia Th).

2 Em Roma foi encontradas até mesmo pixações com temáticas anti-cristãs (Stark, 1997, p. p.146).

3 Vestais eram mulheres separadas para o culto a deusa romana Vesta, por este motivo deveriam manter-se virgens durante todo o período de seu sacerdócio.

Referências

Bright, H., & Simons, K. (2007). Romans - Free Bible Commentary in easy English. Retrieved February 16, 2015, from http://www.easyenglish.info/bible-commentary/romans-lbw.htm

Encyclopaedia Britannica. (2014). Nero | biography - Roman emperor. Retrieved February 18, 2015, from http://global.britannica.com/EBchecked/topic/409505/Nero

Fleming, D. (2004). Bridgeway: Bible Dictionary (e-book). Australia: Bridgeway Publications.

Jeffers, J. S. (1991). Conflict at Rome: social order and hierarchy in early Christianity (e-book). Minneapolis: Fortress Press.

Ryrie, C. C. (1994). A Bíblia anotada. São Paulo: Mundo Cristão.

Stark, R. (1997). The rise of Christianity: how the obscure, marginal Jesus movement became the dominant religious force in the Western world in a few centuries (1st HarperCollins pbk. ed). San Francisco, Calif.: HarperSanFrancisco.

Suetônio. (1923). Roma galante: chronica escandalosa da côrte dos doze cesares. Lisboa: João Romano Torres & C.a.

Tacitus, C. (2000). The Annals. Retrieved February 19, 2015, from http://classics.mit.edu/Tacitus/annals.mb.txt